Eu já caí de um carro em movimento
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Tudo estava em câmera lenta, o asfalto estava se aproximando e, enquanto me lembrava da única aula de judô que tinha feito em toda a minha vida, as pessoas no ponto de ônibus gritavam em slow motion:
— Ohhhh MEEEUU PAAAI! O ME-NI-NO CAAAAAAIIIIU!!
Só quem viveu os anos 80 pode entender toda a loucura que eram aqueles tempos. Cinto de segurança só era usado quando se passava num posto da polícia rodoviária nas estradas. Só pro policial ver e depois a gente tirava para poder seguir viagem ‘tranquilamente’. Segurança, prudência, bom senso, não tinha nada disso nos anos 80. Muito menos em Salvador e, pior ainda, para todos que moravam no glorioso condomínio Parque Júlio César, os ‘outsiders’ que ousavam estar ali no famoso bairro da Pituba da capital baiana.
E só mesmo aqueles anos insanos poderiam explicar duas crianças, juntas, no banco da frente de um carro. Cinto? Volte para o parágrafo anterior. E por juntas entenda-se que não é de forma comportada, mas sim, uma empurrando a outra em busca de espaço e conforto, que poderiam ser encontrados em abundância no banco de trás ao lado da amiga segurança, ambas ignoradas em prol de um acordo que não deveria ser quebrado.
Outra coisa que existia em abundância naquela época se chamava tédio. Ele impulsionava as crianças a aceitarem qualquer esquema, por mais fuleiro que fosse, como aventura ou oportunidade de diversão/distração. Preciso falar tudo isso para poderem acreditar quando eu digo que aceitei, sem ter sofrido ameaças ou ter participado de qualquer ritual ou promessa, um incrível passeio até uma oficina de carro, onde o avô de um dos meus melhores amigos da época tinha convidado eu e ele para passear.
A briga pra ir no banco da frente tinha começado ainda no elevador. Como sempre confiei nas pessoas, aceitei quando ficou acordado que na ida meu amigo iria na frente e, na volta para casa, eu poderia desfrutar desse momento incrível. Só que quando chegou a hora de voltar, quando fui todo pimpão sentar no meu lugar de direito, o meu brother já estava lá falando que não ia sair de jeito nenhum, que o avô era dele e não sei o quê mais lá.
Até aquela dia, situado ali no final dos anos 80, eu não era muito de desistir das coisas (isso só veio a acontecer anos depois, no dia em que eu fissurei meu crânio andando de skate. História prum outro texto). Das raríssimas vezes que tinha desistido de algo, foram das aulas de judô. Era muita mão de obra ficar puxando e jogando os coleguinhas no chão, os quimonos eram tudo sujo, se suava demais e, na primeira e única aula que fui, fiquei fazendo rolamento o tempo todo. Segundo meu sensei, era preciso saber cair no chão antes de começar a lutar.
Pra completar, o fliperama do bairro ficava próximo a uma academia famosa da época e era uma escolha melhor para meu futuro. Ainda mais quando se pensa que lutadores como os irmãos Minotauro e Minotouro saíram de lá. Deus me livre trocar minhas orelhas por dinheiro, fama e sucesso, quando podia ficar fera nos games (Spoiler: não fiquei fera nos games).
E como não era, ainda — tirando o judô por conta do meu vício nos joguinhos — de desistir das coisas que bati o pé firme. Eu vou na frente sim! Bradei e subi. Fiquei do lado da janela e, pelo visto, não bati a porta direito. Os carros ainda não apitavam e nem te mandavam um zap quando você não fechava, corretamente, alguma das portas.
Muitas pessoas que se envolveram em acidentes ou participaram de momentos de quase morte relatam terem visto tudo em câmera lenta. Comigo e, anos e anos mais a frente com Neo, não foi diferente. O organismo prepara o seu corpo para o pior, a descarga de adrenalina é mais alta do que minha pressão sanguínea vendo o Vitória defender escanteio e, seu cérebro, começa a registrar absolutamente tudo.
Estudo dizem que, na verdade, é a sua memória que lembra de tanta coisa, e tanta coisa aconteceu quando a porta do carro se abriu num dia de final de semana na Avenida ACM — sim, Antonio Carlos Magalhães. O cabeça branca botava nome até nos cachorros da gente aqui em Salvador naqueles tempos — que só mesmo em câmera lenta para minha mente conseguir se lembrar ou explicar toda a sequência inacreditável de eventos.
A avenida ACM na época (e ainda hoje) era uma das mais movimentadas da cidade. Por sorte, neste dia trânsito estava bem calmo e o carro estava reduzindo para pegar um retorno. Só que antes de reduzir completamente, ainda em movimento e estando numa velocidade razoavelmente alta, no empurra-empurra entre eu e meu amigo a porta se abriu e, como já diria a Bamda Mel (era com M mesmo!): E lá vou eu. Iôiôiôiôiô, Lálálálálá!!!
Eu vi a porta se abrindo lentamente. No ponto as pessoas estavam num movimento vagaroso das mãos indo de encontro às suas cabeças e não era ensaio de verão. A primeira coisa que pensei é que iria, no mínimo, me quebrar em uns 200 locais diferentes. Só que aí veio a voz do meu sensei, da única aula de judô que fiz e que meu pai ficou putaço porque já tinha comprado quimono e pago matrícula e o primeiro mês (todos não reembolsáveis):
— Rolamento. Rolamento. Rolamento. Encolhe o corpo assim. Isso! Gira, gira.
E assim eu fiz. Ouvi um “POC” bem alto mas talvez tenha sido algum pertence da turma do ponto de ônibus que, a esse momento, já deveriam estar no meio da frase “oh meu pai, o menino caiu” que umas duas pessoas falaram no momento da queda. O chão tava muito quente e eu dei algumas voltas. Algumas não, muitas. Até parar de girar.
Lembro de ter sentido minha mão queimando quando me apoiei para levantar. Há uns 100 metros a frente o carro ainda tava parando, quase na curva. Tal qual figurante de Walking Dead fui caminhando. Caminhando. As pessoas estavam falando no ponto de ônibus já em velocidade normal, e eu com vergonha (?!) olhando pro chão. Passou um carro do lado devagar perguntando se estava tudo bem e eu só pensando: Porra, minha mãe vai se retar comigo quando souber!
Incrivelmente eu não quebrei nada e, nesse momento que escrevo o texto, percebo que minha vida foi uma prequência para Matrix e Corpo Fechado ao mesmo tempo. Apesar de ter escapado das fraturas, me ralei por completo. A quantidade de escoriações e ‘roxos’ no meu corpo era incatalogável. Foi tanto que, antes de chegar em casa, passei por uma sessão demorada de primeiros-socorros. Foi a primeira vez que adultos aceitaram o pedido de uma criança: Mertiolate não!
Anos depois, quando eu e meu brother estávamos num boteco no Parque Júlio César, momentos antes de eu receber uma ligação informando que eu e ele havíamos vencido uma promoção que iria levar a gente prum carnaval inesquecível em Pernambuco, com tudo pago e em hotel 5 estrelas, ele me contou como foi a conversa dentro do carro entre ele e seu avô:
— Meu avô. Marcio caiu.
— Foi meu filho? Quando? Que dia foi isso? Calmamente o avô dele perguntava enquanto reduzia para pegar o retorno. E meu amigo de bate-pronto respondeu:
— Agora meu avô. Do carro!
Foi aí que o avô dele freou com tudo e, desesperado, foi me acolher e perguntar se estava tudo bem, se não tinha quebrado nada.
Parecendo coisa do destino, como aquela lenda urbana de se você falar da pessoa várias vezes ela aparece, o avô de meu colega passou na frente do bar que estávamos e parou pra conversar com a gente. De primeira não lembrou de mim e seguiu seu caminho.
Deu uns 3 minutos, enquanto a gente tava comemorando a viagem que havíamos acabado de ganhar e eu já tava prometendo que, agora, seria a minha vez de abrir a porta do avião pra meu brother cair, o avô dele surgiu do nada falando:
— Márcio! Seu nome é Márcio! Você caiu do carro naquela vez. Achou que iria me esquecer?!
- Evitei mencionar os nomes dos envolvidos, mas esse texto é totalmente em homenagem a esse avô que era um grande amigo da criançada do prédio. Sempre brincava, levava a gente pra passear e, infelizmente, já faleceu. Que esteja descansando em paz e rindo dessa que é só uma das milhares de histórias que o condomínio dos prédios coloridinhos deixou registrada no caderno do tempo. Das raras coisas legais que os anos 80 nos deixaram.
- Mertiolate, naquela época, ardia.
- Minha lembrança é realmente ter vivido tudo isso em câmera lenta. Ainda sinto o calor do asfalto quando lembro e tudo é muito vivo aqui dentro. Eu girando, as pessoas gritando, o caminho que fiz cambaleando e mancando até o carro.
- O barulho que ouvi e o avô do meu colega também e me perguntou quando voltei pro carro, deve ter sido meu ombro ou minha bacia, mas eu falei que tinha sido o meu tênis (?!) para deixarem eles tranquilos. Eu, até hoje, não gosto de dar trabalho, incomodar ou preocupar as pessoas e, naquele dia, não foi diferente.