Eu sei de tudo, vamos sair essa noite?
Comecei a colecionar segredos quando tinha apenas doze anos. Terapia, era isso o que respondia a mim mesmo quando ficava cabreiro de estar invadindo a privacidade alheia. Logo se tornou um vício. Quanto mais sombrio fosse, mais satisfeito eu ficava. E tudo funcionava porque existiam dois ‘eus’, um que ficava nas minhas notas salvas na nuvem, e outro que ia para as ruas.
O ‘eu’ social era como um dos personagens dos meus jogos simulados. Era a pessoa que todos gostavam de ter por perto. Samantha foi uma das primeiras a caírem na minha teia. Ela foi escolhida por acaso, não foi nada planejado. Não tenho porque guardar segredo a respeito disso.
Ela foi até o meu perfil principal e me mandou uma mensagem privada dizendo que sabia tudo sobre mim e que deveríamos nos ver naquela noite. Achei que era apenas um ‘invite’ para abater a taxa semanal de convívio social que a prefeitura cobrava de todos os cidadãos de Aurora. Só que quando ela pegou a minha mão antes de entrar na festa Nave eu percebi que era um encontro romântico, e esses valiam o dobro de pontos. Tirando Samantha, eu não conhecia mais ninguém daquele setor. Ainda segurando a mão dela, fiz uma leve pressão e a puxei para perto de mim.
“Até parece que você é esse homem todo”, ela disse com aquela voz sintetizada pelo amplificador neural 8X que lançaram mês passado. Era como se ela falasse de dentro de mim, o que me deixava ainda mais desnorteado.
Ela tinha um cheiro doce e um hálito de pseudo-menta. Desviei minha boca da dela e lhe dei um beijo no pescoço. Nos abraçamos e foi aí que eu vi a garota de tênis laranja. Em meio a tanta gente esquisita naquele evento regado a bebidas e batidas ciclo-eletrônicas, ela era a única que parecia não estar no clima.
“Tá olhando pra onde, hein?”. Ela sabia o quê meus globos filmavam, era apenas uma pergunta protocolar.
“Você conhece aquela menina ali?”. Resolvi perguntar sem mostrar nenhum remorso ou preocupação maior. Meu ‘eu’ social era um babaca metido a merda e que tentava se passar como ‘confiante’ o bastante para quebrar algumas leis não oficiais, ainda mais num primeiro encontro que podia render a cota mensal de convívio social necessária para poder sair daquele fim de mundo que morava.
“Conheço sim, ela é uma otária e acho que você tem coisa melhor para olhar bem aqui”. Samantha apontou para si mesma com as duas mãos abertas.
E foi nesse momento que eu me apaixonei por ela. Eu não sabia ainda, mas era tudo programado.
A garota do tênis laranja eu descobri depois todos os seus segredos e Samantha tinha razão. Ela era uma otária. Roubava as pessoas para gastar em itens virtuais para o seu perfil holográfico. Não respeitava ninguém, nem a sua irmã mais nova e, pior, já tinha colocado um gato dentro de um saco — amarrado com uma pedra dentro — e jogado no rio do Setor Onze.
Descobri tudo isso com os susurros que Samantha deixava agendado para rolar enquanto tirava meus minutos de sono. Não demorou muito e eu percebi que ela sempre mascava pseudo-menta dez minutos antes de ir para qualquer lugar. Descobri também que ela tinha resgatado um gato no rio que estava dentro de um saco, amarrado com um tijolo azul e pronto para morrer. O nome dele era Chiquinho e ele gostava de se roçar nas minhas pernas e dar uma mordida no meu calcanhar sempre que me preparava para ir embora da casa da minha, agora, namorada.
Mas esses eram segredos pequenos comparados ao que ela tinha produzido na casa de Érica, sua ex. Sim, a otária que tinha um all Star branco e pintou de laranja para se fazer de descolada. Depois que ela a pegou a traindo com uma garota que nem de Aurora era, ela se colocou como administradora do sistema sensorial de seu apartamento. Todas as noites ela mudava bruscamente a temperatura do ambiente, tocava alarmes altíssimos de madrugada e até comprou passagens para gente conhecer os Jardins Altos com seus créditos. A vida de Érica que já não era muita coisa, virou um inferno até que nunca mais foi vista, até porque as buscas nos rios já não eram realizadas há pelo menos 200 ciclos.
E tudo isso ela me disse depois de descobrir todos os meus segredos e ler todas as minhas notas salvas no meu diretório virtual pessoal. Desde as mentiras mais brandas até as mais obscuras. Ela era a minha mestra e ela sabia disso. E foi com ela que eu aprendi como descobrir o segredo de qualquer pessoa.
Era tão simples que eu tive que sobrescrever o meu ‘eu social’.
“É só enviar uma mensagem privada com o título: Eu sei de tudo, vamos sair essa noite?”
Samantha repetia isso todas as noites. Todas.