Ela tinha medo

Mulher Anônima Frustrada Sentada Em Uma Cadeira Atrás De Uma Parede De Azulejos
Foto de Darya Sannikova

Ela tinha medo das coisas mais mundanas até as impossíveis. Tinha medo de escorregar, de andar descalça, medo da água que encostava na sanduicheira elétrica, da cafeteira explodir, de usar panela de pressão, de tomadas mal encaixadas e de fios aparentes. Medo de deixar a televisão ligada, de tomar café muito forte, de tomar café à noite, de comer comida pronta, de viajar sem levar sua própria comida.

Ela tinha medo da carne assada no ponto, da comida com sal, dos biscoitos com açúcar. Da janela aberta, de portas destrancadas, da varanda sem rede de proteção, de subir no elevador, de descer no elevador. De elevador.

Ela tinha medo de escorpiões alpinistas, de aranhas nadadeiras, de peixes grandes, de piabas com dentes de piranha, medo do cachorro na coleira, medo do cachorro soltar da coleira e lhe dar uma mordida, com seu dente canino, acertar uma veia e sangrar até morrer. Ela tinha medo de gato, de hamster, de polvos gigantes, de moréias elétricas e de cobras que escalam plantas de galhos finos sem quebrá-los.

Ela tinha medo de água parada, de correnteza, das ondas do mar, da areia da praia, das pessoas andando de bicicleta na ciclovia, das bicicletas no meio da rua, medo de atravessar fora da faixa, medo de atravessar dentro da faixa sem olhar para os lados mais de uma vez, medo de atravessar uma rua sem faixas e sem carros vindo — uma moto poderia surgir do nada — ela tinha medo de homens na moto, medo de moto. Tinha medo de entrar no ônibus errado, de pegar ônibus vazio, de pegar ônibus cheio, de andar em carro de aplicativo.

Ela tinha medo de pessoas desconhecidas, de sair de casa sem agasalho, de sair na rua à noite, de sair na rua muito cedo, do vento na cara, da poeira que subia, de faltar energia quando estivesse em casa ou na rua, de água da torneira, de água filtrada mecanicamente, de comer na rua, de comer em barracas, de comer na praia, de comidas gordurosas.

Ela tinha medo de filme violento, de sair de casa sem os documentos, de levantar rápido ao acordar, de dormir muito tarde, do que lia no celular, de usar demais o celular, de mercado mal frequentado, de glutamato monossódico, de realçador de sabor e de ficar doente.

Ela tinha medo que alguém lhe dissesse a verdade ou que lhe contassem mentiras. Medo de ficar pobre. De saber que é pobre. Medo de falar de política e também do fantasma do comunismo.

Ela tinha medo de estar ausente, de ficar doente, de tomar remédio vencido, de não tomar os remédios, de tomar muito sol, de esquecer da Vitamina D, de guardar os produtos que vinham do mercado sem higienizá-los, de lugares desconhecidos, de conhecer novos lugares, de boatos, de coisas que lia no whatsapp, de comida não refrigerada, de piratas, de pessoas estranhas, de portões eletrônicos, de apertar o botão errado.

Ela tinha medo de ser assaltada num condomínio fechado com segurança 24 horas e câmeras a cada dois metros, de deixar as coisas do lado de fora da casa, de comer demais, de esquecer de comer, de sentar no chão, de sair de casa sem álcool em gel na bolsa, da bateria do celular descarregar, de sair sem o celular, de sair com o celular.

Ela tinha medo de morrer. Medo de viver.

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Baiano, engenheiro de software, redator na pocilga.com.br, integrante do podcast Suco de Umbivis e aspirante a escritor. Nas redes sociais @marciosmelo

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Marcio Melo

Baiano, engenheiro de software, redator na pocilga.com.br, integrante do podcast Suco de Umbivis e aspirante a escritor. Nas redes sociais @marciosmelo