1º de Agosto
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Não lembro de nada do dia que nasci, mas sei que foi num dia frio. O céu estava cinza e as cigarras já estavam cantando. Da cozinha vinha um cheiro de laranja e café preto recém coado, um aroma que percorria todo aquele corredor frio — as paredes manchadas de umidade e geladas ao toque — até chegar na sala onde meu avô estava sentado vendo algo na TV. Ele estava fumando um cigarro de palha e adormecia com facilidade, mas se alguém mudasse o canal ele logo resmungava: “Ô esse menino, deixe aí que eu to assistino”.
Quando eu nasci já era noite. Acordei todo mundo na casa, meus tios que ainda eram crianças, meus avós e alguns amigos que moravam perto. Deixei meus pais num misto de felicidade e pavor. O que seria da vida deles de agora em diante? Tudo havia mudado num instante. Enquanto era só um acontecimento, um sonho, um prazo a se esperar, tudo ainda estava suspenso, no ar, como os sonhos que eles tinham de vez em quando. Não, agora eu estava ali. Chorei alto para deixá-los cientes do problema que eles tinham, agora, em mãos.
A chuva parou junto com o meu choro, que se calou num colo quente. Eu não lembro de nada do dia que nasci, mas eu sei que foi assim. O tempo abafou e aquele mormaço anunciava que, graças ao bom Deus de minha avó, ainda teria mais água para cair no dia seguinte. E os milhos iriam pintar a roça de amarelo. Minha tia iria ter várias novas espigas para pentear, como se fossem aquelas bonecas que custavam o dinheiro de meses. As laranjas iam começar a cair no chão se ninguém fosse pegar e o pé de manga, ainda jovem, já mostrava que teria muito a oferecer num futuro não tão distante.
Na manhã seguinte eu já estava ciente que pertencia a tudo aquilo ali, não conseguia ainda pronunciar as palavras engraçadas que todos falavam, mas sabia disso, mesmo sem me lembrar direito do que tinha acontecido no dia anterior. Eu era tão pequeno que minha prima conseguiu me segurar sem muito esforço. De pé na sala, meu pai imitava meu tio quando ficava com fome, contava piadas e fazia todo mundo rir. Minha mãe apenas sorria, seus pensamentos estavam ligados todos a mim naquele instante. A mesa em que se tomava café era nova e iria ficar na família por mais vinte ou trinta anos até nada daquilo ali mais existir.
O quente-frio estava sem café e meu avô só iria descobrir isso dali alguns minutos. De frente pro quadro que mostrava uma linda casa num vale encantado, com muito verde, um rio passando na frente e flores por todos os lados estava a minha avó, de pé. Ela nunca sentava para tomar café, ela sempre dizia que já ia sentar, mas nunca sentava. Deixava espaço sempre para seus filhos e netos. Dali vinte anos, ela iria deixar espaço para um porco enorme de gordo que ela iria criar como um filho, dentro de casa, para o desespero dos poucos filhos e netos que ainda iriam a visitar em feriados esticados. Ela ainda não sabia disso e eu não tinha como lhe contar, apenas observei ela assoprar a xícara, tentando esfriar o café que estava pelando.
Não lembro de nada do dia que nasci, mas sei que tudo isso aconteceu.